Na Terra dos Sonhos
Rem Koolhaas, no livro Delirious New York, reconstitui o parque da Terra dos Sonhos de Coney Island, o laboratório do Manhattanismo, através de uma cartografia intuitiva do inconsciente. O edifício das incubadoras, a secção número 7 desta cartografia, é o campo de treino da metrópole que Koolhaas descobriu em Coney Island. As condições que tornam viáveis os prematuros, que expandem o limiar da sobrevivência dos mais frágeis, não estão nos hospitais mas na terra da fantasia, no parque de atracções, no lugar do espectáculo. O limiar da espécie é consumido enquanto se encena como espectáculo do progresso. Coney Island foi o único lugar que se dispôs a multiplicar a máquina de chocar bebés apresentada por Martin Arthur Couney na Exposição Internacional de Berlim em 1896. A incubadora original desviava a cruel energia do espectáculo para tornar viáveis seres improváveis. A fantasia ajuda, literalmente, ao crescimento demográfico do real, permite uma mutação profunda na ecologia, ou aquilo a que Rem Koolhaas chamou uma variação benevolente sobre o tema de Frankenstein. O projecto da Interminho, da autoria do Atelier da Bouça, também é uma incubadora. Talvez porque esta secção do Jornal Arquitectos queira ser um espaço para aconchegar coisas improváveis, novas ecologias, um espaço para o crescimento demográfico destas coisas frágeis e no entanto cheias de energia vital a que chamamos projectos. A grande vantagem em colocar projectos numa incubadora é dar vida a prematuros que, de outra forma, não sobreviveriam, é transformar quimeras em actores da disciplina e da prática. Importa esclarecer que esta outra vida não é a mesma, claro está, dos projectos que se tornam arquitectura, não é uma versão remendada do teste da realidade construída. Esta outra vida faz dos projectos incubadoras da arquitectura, que, nos seus limites, nas margens de onde provém o novo, é frágil, pouco viável e necessita de um ambiente controlado no qual ganhar peso e resistência, precisa de amigos. O preço desta outra viabilidade é o espectáculo da revista de arquitectura. O realismo quase absurdo desta fantasia esclarece que os projectos de que falamos não são quimeras, são o lugar privilegiado onde se acumula uma maneira de pensar, uma disciplina, um corpus de conhecimento em constante transformação a que chamamos arquitectura. Esta incubadora já tinha sido o produto de um processo de selecção genética: o concurso público de concepção para um programa a que todos os municípios têm direito, ou tinham, uma incubadora de empresas para aconchegar o empreendedorismo num novo parque empresarial pendurado numa infra-estrutura viária de grande acessibilidade. O programa de concurso era bastante específico, este projecto testa os limites desta especificidade, ou mais precisamente, a estratégia de projecto encarrega-se de questionar o mais evidente limite do programa, a sua programada obsolescência e transformação de uso. Os equipamentos de apoio logístico e social programados, como creches, refeitórios, ou domiciliação temporária de estruturas administrativas de empresas em formação, corriam o risco de se esgotarem ao fim de algum tempo. Cumprida a incubação, a incubadora resultaria desnecessária, porque não seria possível trocar continuamente de prematuros. A estratégia de projecto arranca assim de uma dupla reacção, ao programa específico e ao programa latente, procurando uma resposta formal e infra-estrutural para a intensa rotatividade de uso que se desejava. Para além da proximidade ao porto de Vigo, que faria desta incubadora um candidato forte para a fixação de empresas logísticas, chegou a estar programada a intersecção do edifício com o putativo traçado do TGV, coincidência que ampliou as expectativas do promotor no investimento ao mesmo tempo que pôs em causa a sua própria construção. Uma incubadora capaz de se relacionar directamente com infra-estruturas rodoviárias, portuárias e ferroviárias seria um êxito garantido, não convinha contudo ser atropelada pela própria infra-estrutura. Episódio caricato que explica a flutuação de expectativas durante o desenvolvimento do projecto, a instabilidade gerada pela possível estação do TGV coincidiu com as oscilações de orientação do promotor. Apesar de a sua ambição ser clara e específica ? uma incubadora ?, os contornos da sua concretização sempre foram ambíguos e instáveis. Quantos metros quadrados? Que programas complementares? Que unidades programáticas configurar? Qual a dimensão do investimento? (não confundir com o dinheiro que havia para gastar) Qual a expectativa de retorno? Durante quantos anos se incubarão empresas? Essa instabilidade provoca dilemas constantes que afectam a configuração do projecto, um drama habitual dos arquitectos que projectam edifícios para clientes que sabem o que querem mas que nem sempre sabem como querem, nem como o podem fazer. O projecto da incubadora Interminho resulta de um olhar realista perante esses dilemas e transforma-os num tema de projecto que o percorre a várias escalas, da infra-estrutura ao detalhe da fachada. Como resolver um programa evidente e outro latente? Como desenhar um edifício flexível sem recorrer à redundância de sistemas que exigem demasiado investimento inicial? E sem recorrer ao modelo do canivete suíço, em que soluções especializadas se amassam numa polivalência que dificulta o seu uso? É a resposta a estas perguntas que torna o saber específico da arquitectura um saber necessário, os dilemas do promotor geram uma crise que necessita de mobilizar o conhecimento disciplinar para ser desbloqueada. Este projecto específico, além de cumprir a função social de pôr à disposição da sociedade soluções formais e construtivas para ambições latentes, demonstra a possibilidade de sincronizar a consolidação da forma com a investigação programática. A estrutura e a infra-estrutura organizam-se segundo retículas de diferentes escalas, permitindo uma reconfiguração escalar e funcional, aceitando variações de intensidade de uso, de compartimentação ou de orgânica e integração da estrutura empresarial. A diversidade formal dos invólucros de programa denuncia os seus diferentes metabolismos, componentes com tempos de vida diferenciados e hierarquizados.   É um volume uno, é uma caixa de acontecimentos, em que se estabelecem regras como num loteamento. É a infra-estrutura que determina a ocupação que aquele “loteamento” vai ter, por isso a divisão entre os diversos gabinetes, ou seu tamanho, são determinados por esta interligação entre programa e infra-estrutura? Um gabinete ocupa três módulos, cada um com o seu fornecimento de energia, os seus interruptores? que têm de funcionar em conjunto quando o gabinete ocupa os três módulos. Quando ocupa seis já é diferente, ou quando ocupa um, que é a unidade mínima. Uma empresa pode ocupar o piso todo, ou três módulos, ou dois? semelhante a um parque de campismo, em que cada um ocupasse o seu lote de maneira provisória. Cada um ocuparia o seu lugar de esgoto, o seu ar condicionado, a sua energia. Era um tapete infra-estruturado, uma caixinha de acontecimentos em cima de um tapete.   O pátio? Todo o projecto é um exercício de como ultrapassar as leis do plano de pormenor. O plano de pormenor obrigava a um determinado perímetro e a cérceas, encaminhando-se para um edifício composto por um volume central mais elevado e dois volumes laterais simétricos, mais baixos, a “morder” o central, uma volumetria muito desenhada, impositiva e estranha às necessidades do edifício e à sua condição topográfica. Propusemos não um volume composto, mas um conjunto de volumes que, cumprindo os pontos-chave do perímetro e das cérceas, não preenchem por completo a mancha edificável. A alteração da lei que regula as creches obrigou-nos a insuflar a área da creche de uma maneira que não se esperava e que, tornando-se incomportável, nos obrigou a fazer aquele superpátio para o qual se abre. O plano de pormenor tinha ainda como premissa a terraplenagem do terreno (um terreno super inclinado que desce um piso na largura do edifício), propusemos poupar esse dinheiro e utilizar a semicave resultante, que, com o pátio, podia ser aproveitada para os programas novos, como a creche.   As circulações exteriores vêm de uma obsessão de projecto ? uma coisa que se repete em vários dos nossos projectos ?, e achámos que num edifício destes funcionava. Assim, impusemos ao programa aquela estratégia, que tinha a vantagem do acesso directo aos vários pisos a partir do exterior ? quem tem uma incubadora no terceiro piso não precisa de entrar no rés-do-chão, pode ir directamente na sua viagem cinemática até ao seu gabinete. Também tem vantagens para os bombeiros, porque o edifício tem exactamente o tamanho que obriga a ter duas caixas de escadas, e nós conseguimos com esta ferramenta ? manter as circulações sempre pelo exterior ? ter apenas uma caixa de escadas. Uma coisa mais compacta, menos dividida, o tal parque de campismo com um tapete infra-estruturado. Outra das coisas que a rampa fazia era controlar a insolação?   A circulação periférica e segmentada viabiliza as várias configurações do interior e sobretudo separa a máquina da carroçaria. A circulação lenta das grandes rampas sincroniza a relação com o jogo variável de sombras e vistas entrecortadas do avesso da pele. As grandes rampas separam o engenho do espectáculo que o torna possível, da pele cambiante, da retícula de latas de tinta. Sim, parece arrevesado, mas este projecto cobre-se com o contentor do mais comum revestimento, a lata de tinta ou diluente, usada contra a sua própria lógica, como elemento plano e não como volume, pela sua forma superficial e não pela sua capacidade de funcionar como contentor. Uma estratégia formal refinada, tornada viável através do uso de um elemento modular humilde, feito em série, com boas razões proporcionais e fácil de substituir. O tema e a variação, a pele decorada com um rendilhado de vazios e sombras, uma imagem preciosa, capaz de transformar a sua composição, bem como os seus elementos (a substituição das "latas" foi contabilizada no custo da fachada), trazendo à superfície, evidenciando, tanto uma solução formal como um processo, uma forma latente para um programa latente.  As latas… Querem saber o preço? Tínhamos um orçamento de aproximadamente 150 euros por mil unidades, e necessitávamos para todo o edifício de 28 000, ou seja, cerca de 5000 euros de material de revestimento. Nós sabíamos que o prazo de validade da lata eram cinco anos, em cinco anos a lata desaparecia, por isso em cinco anos tinham de ser todas substituídas. Algumas podiam resistir mais, dependendo da orientação da fachada? e estariam protegidas por prateleiras. Havia vários padrões, havia várias ideias? As latas tinham de ser fixadas de forma a poderem ser substituídas uma a uma, e as rampas davam acesso a isso tudo. A rampa também era uma galeria técnica.   Qual era o ciclo? Eu acharia graça que aquilo mudasse todos os anos? ou seja, as incubadoras mudavam e aquilo mudava. Neste aspecto o edifício era muito publicitário. Eram os ciclos do edifício que mandavam. Era de facto um ecrã no qual se mudavam os píxeis, e com um custo que permitia este tipo de abordagem. As latas ocupam muito espaço. O fornecedor tem encomendas mínimas, e não são mil latas, portanto não dá para mudar só quatro ou cinco aqui e além. Dentro de cada encomenda só pode haver um número limitado de cores, o espaço da manutenção tinha espaço para armazenar umas quantas de latas, por isso tínhamos de gastar a encomenda toda menos umas poucas latas que cabiam no armazém, que serviam para reposição. O custo de material anual para uma substituição continuada seria de aproximadamente 1000 euros. A mão-de-obra seria relativamente barata, já que a incubadora previa dois funcionários designados para a manutenção do edifício e do parque empresarial, e nós pensámos que nos tempos mortos poderiam ir substituindo as latas. A manutenção era assim uma coisa muito evidente. Até nos agradava a degradação das latas, a evidência de envelhecimento do edifício; uma incubadora cheia de ferrugem? o terreno tem uma cor ferrugenta. O parque empresarial, uma parceria público-privada, dissolveu-se antes de a obra começar.   Este artigo foi publicado no J-A 246, Jan ? Abr 2013, p. 16-25.
in Jornal Arquitectos

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