À semelhança de processos eleitorais recentes o tema das migrações dominou, e promete continuar a dominar, a campanha eleitoral francesa. Se tivermos em conta o somatório dos votos dos extremos, uma impressionante fatia da população francesa votou contra o projecto europeu, assente desde o velhinho Tratado de Roma nas liberdades de circulação. O discurso anti-migrações é, na realidade, um discurso contra a presença dos "outros" entre "nós", ainda que saber quem sejam exactamente os "outros" não seja absolutamente claro.
Neste quadro, Marine Le Pen anunciou a sua intenção de fechar as fronteiras francesas. Disse-o de forma consistente durante toda a campanha eleitoral, e reafirmou-o no rescaldo do ataque terrorista nos Campos Elísios nas vésperas da eleição. A associação necessária entre migrações e terrorismo que domina alguma agenda política não é evidentemente verdadeira. A realidade é bem mais complexa. Mas no caldo eleitoral tudo se mistura, e o resultado é potencialmente explosivo.
Desde logo, o terrorismo assume hoje feições complexas. Não se resume à identificação de um inimigo externo, distante, estrangeiro, que se pode manter afastado das nossas casas. O inimigo real é, cada vez mais, um dos nossos, que partilha do nosso estatuto, vive na nossa rua, próximo de nós e dos nossos. São nacionais de Estados-Membros que, ao contrário do que acontecia até há pouco tempo atrás, não foram fazer a jihad para fora da União, aqui permanecendo e encontrando o espaço permeável das democracias ocidentais para executar atentados simples na sua preparação e realização. A ameaça é, por isso, tanto interna como externa, pelo que o encerramento das fronteiras pouco resolve. Prova disso é que a França, como aliás outros Estados-Membros, suspenderam o Acordo de Schengen há vários meses tendo os seus controlos fronteiriços a funcionar.
Em qualquer caso, importa não esquecer que a política das fronteiras abertas apenas permite a deslocação e o trânsito de pessoas no território europeu. Nada garante em matéria de fixação e residência nos Estados da União. Esta é a outra dimensão das migrações ? a verdadeira e própria liberdade de circulação de pessoas ? contra a qual se fez, em primeira linha, o Brexit. Neste sentido, as migrações de Le Pen não são necessariamente as mesmas de Boris Johnson. Uma coisa é controlar quem entra e quem sai; outra é decidir quem fica. Certo que no projecto da Frente Nacional a sobrevivência da União pode estar em si mesma ameaçada, e com ela o mercado interno e a liberdade de circulação de pessoas que o mesmo implica. Mas no discurso político eleitoral tudo se confunde, e na lógica binária do "nós" sem os "outros", do tudo ou do nada, joga-se o caminho percorrido. Joga-se a paz e a democracia na Europa, e com elas o futuro comum dos europeus.
A autora escreve segundo a antiga ortografia.