Pólvora seca da teoria

Recentemente António Costa referiu, e bem, que o modelo de uma economia competitiva "não pode assentar em baixos salários e na limitação dos direitos dos trabalhadores".

O ponto não é apenas válido na teoria. Uma análise pelas empresas mais competitivas do mundo ajuda a perceber que o trabalhador é uma peça chave do maior valor acrescentado, até porque é ele que na génese o cria, através das ideias para patentear os produtos e serviços das empresas.

Mas se a teoria de Costa é substancialmente diferente, para melhor, da de Passos Coelho, que preferia a competitividade através do empobrecimento, no final do dia a teoria de pouco ou nada vale sem a inestimável experiência para a operacionalizar. Tal como o Programa Capitalizar, que após quase um ano de actividade, de pouco ou nada serviu para capitalizar as empresas nacionais, ou a Web Summit, um excelente negócio para os promotores, mas quase inócua para a economia real do sector.

Na mesma linha de pensamento está o relatório para a sustentabilidade da dívida pública. Um documento meritório do PS+BE, porque debate um problema que tem de ser resolvido, em contraste com a obscuridade do governo anterior sobre o tema. Contudo, o trabalho não passa de um ensaio meramente teórico e sem grande capacidade de resolver o problema de fundo. É como querer apagar o foco de um incêndio apresentando ideias para apagar apenas as suas frentes extremas.

O erro principal reside em não identificar e trabalhar os fundamentos pelos quais, num mercado globalizado, os mecanismos de formação de preço funcionam. Nomeadamente da superior importância do binómio de forças, procura-oferta, bem como da percepção dos intervenientes de mercado nas mesmas. Todos os preços dos principais activos gravitam em redor destas causas, razão pela qual em alguns casos é apenas a restrição artificial da oferta que mantém os preços mais altos.

É neste ponto essencial que reside o sucesso do Japão em emitir dívida de longo prazo aos custos mais baixos do mundo, apesar de ter um rácio de dívida vs. PIB muito superior à média das economias avançadas. É igualmente a explicação para a manutenção das taxas de juro nacionais em níveis não proibitivos. O BCE, através das suas compras, seca parte importante da oferta e, sem ela, o interesse existente para a dívida emitida disponível é insuficiente para causar uma disrupção significativa nos preços.

Ora, um dos pontos sugeridos no documento é o da redução da maturidade da dívida, por forma a reduzir a taxa de juro média. O problema é que se no curto prazo tal poderia parecer benéfico, iria alterar substancialmente a componente de rotação do stock de dívida, aumentando a oferta e colocando uma pressão adicional no volume anual de refinanciamento.

Esta foi aliás uma das principais razões para a crise de 2011, conforme o estudo do FMI que suportou o pacote de auxílio. Outra razão foi a excessiva dependência de investidores internacionais na compra de dívida pública nacional, o que numa situação de incerteza económica do país provocou a fuga inevitável da maioria dos potenciais compradores. Para além do facto básico de que os juros ganhos por estrangeiros com a nossa dívida são uma fuga de capital encoberta, que ascende a quase cinco mil milhões de euros por ano. Ao passo que o rendimento interno que advém desse custo para o Estado é, em parte, reencaminhado para a economia nacional.

É, pois, essencial fomentar a compra de dívida nacional por contribuintes e investidores residentes, da mesma forma que a simplificação e massificação do acesso às bolsas de Wall Street permitiram ao centro financeiro o enorme sucesso que tem tido. Foi por isso totalmente absurdo o anterior governo ter isentado de imposto sobre os rendimento da dívida pública apenas os estrangeiros, quando deveria ter sido o inverso.

Em suma, antes de se pensar em reestruturar a dívida pública por portas e travessas, temos que a tornar substancialmente mais interessante e de acesso generalizado. Uma das opções seria um protocolo entre o Estado e a banca, por forma a qualquer cidadão adquirir dívida pública com recurso a um crédito imediato específico, com taxas similares ao rendimento da dívida, fazendo a operação tendencialmente neutra do ponto de vista financeiro, mas com possibilidade de benefícios fiscais no IRS/IRC.

O que se poderia perder na receita do imposto seria largamente compensado com a redução da taxa de juro da dívida, pelo efeito da maior procura. Recordo que uma redução de apenas 0,5% no juro médio equivale a 1.200 milhões de euros por ano de poupança, ou cerca de 10% do imposto amealhado com o IRS, sendo a cereja no topo do bolo não ter que renegociar algo ou pedir autorização a Bruxelas.

O autor escreve segundo a antiga ortografia.

in Diário Economico

Ver original


Parcerias

Arquivo