Entrevista Nuno Markl: "Não somos um público com grande sentido de humor"

Como é que vê a evolução do panorama humorístico em Portugal nos últimos 20 anos?

O grande boom do novo humor português deu-se ali por volta dos anos 2000 onde surgiram uma série de formatos: por um lado o "Levanta-te e Ri", por outro "O Homem Que Mordeu o Cão" na sua vertente ao vivo onde existia espaço para que os novos humoristas pudessem mostrar-se "stand up", como foi o caso de Ricardo Araújo Pereira, José Diogo Quintela, Nilton, entre outros. Tenho algum orgulho de ter feito parte disto e assisti de um lugar muito privilegiado a toda esta transformação. Já fazia escrita humorística desde 1995.

Já fazia escrita de humor desde 1995, ano em que entrei para as Produções Fictícias e foi uma entrada absolutamente "embasbacada" porque eu estava a fazer as minhas coisinhas na rádio para meia dúzia de pessoas e estava a fazer uma rádio novela na Rádio Comercial, sendo que na altura, em 1994 e 1995, a Rádio Comercial tinha pouquíssimos ouvintes e estava pelas ruas da amargura. Eu estava a fazer essa rádio novela "A Saga de Abílio Mortaça" e foi esse programa que foi ouvido por Nuno Artur Silva que estava à frente da "Produções Fictícias".

Na noite em que o conheci, o Nuno Artur Silva convidou-me para trabalhar nas Produções Fictícias e escrever para o Herman José? fiquei sem palavras. "E isso é para começar quando?", perguntei. "Amanhã", disse ele. No dia seguinte, estava a realizar um sonho de anos e a escrever para o Herman José e foi aí que tudo começou.

Nas Produções Fictícias foi-se formando uma autêntica "Dream Team". Nas Produções Fictícias foi-se compondo uma equipa de pessoas que tinha como objetivo escrever para o Herman. Estava lá o João Quadros, o Ricardo Araújo Pereira? foi-se juntando um grupo de pessoas sem que nenhum de nós tivesse a ambição de brilhar a solo. Adorávamos aquilo que fazíamos: escrevíamos para o maior humorista português e com a referência humorista com que tínhamos crescido e que nos tinha formado humoristicamente. Não tínhamos ideia se éramos uma equipa de sonho na altura mas trabalhávamos muito bem uns com os outros e era um gozo tremendo.

No seio das Produções Fictícias apercebemo-nos de algumas coisas como por exemplo o facto do Ricardo Araújo Pereira ser um notável intérprete. O Ricardo Araújo Pereira lia os textos que nós escrevíamos para o Herman e pela forma como ele os interpretava, nós sabíamos se aquilo ia ter sucesso. Nós chorávamos a rir com a performance dele e antes de chegar ao Herman, tínhamos ali um teste do funcionamento dos textos. E o Ricardo é hilariante nas coisas que escreve e na forma como as interpreta? nunca me vou esquecer da primeira vez que o vi nas Produções Fictícias e ele estava só a contar a história de uma ida à casa de uns primos na província e aquilo era stand up puro? sei que chorei a rir e só pensava "quem é este gajo?". Dali a pouco já estava a trabalhar connosco e desenvolvemos uma grande amizade. Foi espantoso assistir a esta transformação e no meu caso, quando estamos dentro da revolução não nos apercebemos que esta está a acontecer com estas dimensões.

Como é que está o humor português? Está vibrante! Dou como exemplo a minha experiência com aqueles que foram os espetáculos da Nêspera no Coliseu, possivelmente a coisa mais indie e experimental de sempre que eu e o Bruno Nogueira fizemos. Ver a sala do Coliseu cheia para ver aquele espetáculo deu para ver que o público português está muito disponível para abraçar novos conceitos de comédia apesar de não sermos um público com grande sentido de humor. Nós gostamos de rir dos outros mas não gostamos nada de nos rirmos de nós próprios.

E continuamos assim? Vamos melhorando lentamente mas de certa forma continuamos assim e às vezes acontecem coisas bizarras como este "Trás-os-Montes gate", para o qual não tenho uma explicação lógica. O José Cid fez uma declaração naquele estilo que todos conhecemos e eu limitei-me a rir da bizarria da ideia e dali a pouco estávamos a levar traulitada da grande. Fui ameaçado e percebi que estava a acontecer algo de grave quando recebi uma mensagem de uma senhora de Trás-os-Montes, com uma fotografia de perfil muito querida, que me escreveu "hás-de cá vir que te partimos os dentes!" (risos). Mas tudo isto passa? as redes sociais são explosões que parecem muito maiores do que na verdade são e depois percebemos que não foi assim tão grave. Nunca mais falei com o José Cid depois desta bronca nem sei se ele já voltou lá entretanto. Mas ainda temos alguns momentos em que nos picamos muito e para além disso, a profissão de humorista nesta era da exacerbação do politicamente correto, é vista de uma forma curiosa. Já houve o tempo em que o humorista era visto como aquele que trazia alegria e boa disposição e agora é visto com alguma desconfiança? como o tipo que vai dizer uma coisa qualquer que vai obrigar-nos a cair em cima dele. Isto é válido tanto para humoristas como o Rui Sinel de Cordes que faz um humor negro como para mim que faço programas da manhã e sou ouvido por famílias.

Estamos menos tolerantes para a comédia? Dou sempre este exemplo para a pouca tolerância que existe hoje em dia para a comédia e como qualquer tema pode gerar uma polémica gigantesca: um dia mandei uma boca sobre ninjas e para mim, ninjas são figuras míticas? de repente, recebo no meu Facebook uma mensagem de uma associação ninja em Portugal a cascar. Um humorista, por muito familiar que ache que é e apesar de falar para muita gente, vai sempre arranjar sarilho? alguém fica sempre irritado. E se tivermos paz em relação a essa ideia, esta é uma profissão ótima para se ter.

Não existe um contrasenso na ideia de que somos avessos à comédia numa altura em que há tanta oferta? As duas coisas acabam por se equilibrar. Há muita gente que ouve os humoristas com a mente bifurcada, sendo que num lado está a postura de "vou-me rir" e do outro está "assim que este gajo puser um pé em falso, está tramado". As pessoas olham para o humor num misto de algo que nos vai fazer bem mas por outro lado pode irritar solenemente e explodir na net, muitas vezes de forma anónima.

Quando pesquisamos por Nuno Markl no Google a primeira associação que surge é Facebook. Alguém com esta exposição tem de viver ou morrer através das redes sociais? Eu costumo dizer que, na sua essência, odeio o Facebook! No entanto, vivo muito lá e tenho uma existência muito ativa no Facebook. É claramente um mal-necessário: é ótimo para divulgar o nosso trabalho, e devo muito ao Facebook por ter salas cheias dos projetos onde participo, mas por outro lado temos de levar com críticas feitas com tão baixo nível que me leva a perguntar "porque é que estou a aguentar isto?".

Um dos desafios e ambições para o futuro passa também por ter espaço para experimentar outros registos? Este filme para o qual escrevi o argumento tem uma boa dose de melancolia. Não sei se é da idade mas as coisas que escrevo, sobretudo os dois argumentos que escrevi, vão muito lá abaixo. Tenho esse lado melancólico e tenho alguma tristeza em mim. Não no sentido da depressão mas faz-me falta alguma tristeza. Acharei sempre interessante se as pessoas aderirem a algo feito por mim que fuja ao registo habitual e que descubram o meu outro lado: o lado bom da meia-idade, digamos.

Ainda tem algo para fazer na rádio? Na verdade, acho que não! Estou agora a sentir com grande intensidade o peso de acordar muito cedo há tantos anos. Adoro escrever à noite e não consigo porque tenho de acordar cedo. Por isso, sinto-me bastante dividido porque adoro fazer rádio juntamente com aquela grande equipa da manhã mas é duríssimo. Quando se começa aos 26 anos, fazemos tudo com enorme entusiasmo, mas com 45 anos já começa a pesar. A pressão de ter que ser infalivelmente cómico naqueles dois blocos que tenho no Programa da Manhã é uma espécie de "funcionalismo público" da comédia e começa a ser torturante. Cá em Portugal é muito difícil fazer estas coisas na rádio porque nestes países a rádio é muito mais do que um gira-discos, aposta-se muito na conversa. Uma das promoções que mais se ouvem nas rádios portuguesas é que se gabam de passar muita música e pouca conversa e isso para mim, é a pior promoção de sempre. Vejo por exemplo nos podcasts o espírito das rádios piratas, nestes podcasts fazem-se muitas coisas que não têm espaço nas rádios portuguesas.

O que falta fazer na televisão? De um modo geral, a televisão em Portugal arrisca pouquíssimo e o exemplo disso são os reality shows e os concursos de talentos. No panorama televisivo há muito pouca coisa a acontecer no âmbito do humor. Tive a felicidade de fazer coisas tão interessantes como o "Herman Enciclopédia", "Paraíso Filmes", "Programa da Maria" ou "Os Contemporâneos" e hoje em dia temos "Os Donos Disto Tudo" e pouco mais. Ao nível da ficção, a RTP está a lançar várias séries e eu já fiz uma proposta de uma série à RTP: uma série cómica baseada na minha infância e juventude. Vamos ver, até porque só o facto da ação se passar há trinta anos é tramado por causa das roupas e dos cenários?

in Diário Economico

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