Os "brandos costumes" na Justiça portuguesa

Ponto assente: a Justiça portuguesa é lenta e os Tribunais defendem-se com a quantidade de processos pendentes. De todos os factores que contribuem para essa aparente inevitabilidade, há um que, estando intimamente ligado à mentalidade e cultura portuguesas, pode ser mais complexo de resolver do que parece.

Os portugueses gabam-se, e bem, de ser um povo de brandos costumes. Sendo muitas vezes uma virtude (a violência tende a ser a ultima solução para os problemas), é simultaneamente um defeito com consequências graves quando redunda em complacência, o que sucede diariamente nos Tribunais, em especial com a conduta processual das partes.

A Lei portuguesa tem um mecanismo chamado "litigância de má-fé". Simplificadamente, quando uma parte que se dirija a Tribunal (i) com um pedido que sabe que não tem fundamento, (ii) alterando a verdade dos factos ou, em geral, (iii) fazendo um uso manifestamente reprovável do processo, pode ser sancionada com multa e com uma indemnização à parte contrária se esta a pedir.

Não obstante a potencial utilidade, existe uma grande hesitação na sua aplicação pelos Tribunais, que preferem reservá-lo para casos em que a conduta de uma das partes roça o insulto, e isto apesar de encontrarmos diariamente processos que não têm a mínima viabilidade, defesas que apenas adiam o inevitável e recursos de decisões claramente inatacáveis.

Olhemos para o direito ao recurso, por ser inviolável e estar, para os agentes da Justiça, como o direito à greve está para a sociedade em geral: ninguém se atreve a questioná-lo. Os recursos são avaliados em dois momentos. Primeiro, quanto aos pressupostos formais (se quem recorre tem legitimidade, se respeitou o prazo, etc.). Depois, se for admitido, o Tribunal de recurso aprecia os fundamentos materiais.

Na hora de avaliar a eventual má-fé, os Tribunais parecem focar-se, maioritariamente, nos pressupostos formais. Se estes estiverem cumpridos, o recurso é admitido, pouco importando as barbaridades jurídicas ou inverdades factuais que lhe sirvam de fundamento. De facto, se não tinha fundamento, o recurso improcede e pronto. Só que, entretanto, passaram-se meses ou anos até uma decisão judicial que era mais do que correcta se tornar definitiva.

Para concluir, acredito que os Tribunais deviam sancionar mais vezes a litigância de má-fé, especialmente quando a falta de fundamento do pedido que lhes é feito é óbvia. Não duvido de que as partes (advogados incluídos) pensariam duas vezes antes de recorrer de decisões só porque "não se perde nada", só para atrasar a sua execução ou só para forçar um acordo. Este raciocínio é aplicável, com as devidas adaptações, a todo e qualquer pedido formulado perante um Tribunal.

Se é um comportamento fácil de alterar? Certamente que não, porque depende de uma mudança de mentalidade e de perspectiva, mas é pelo menos importante que fique claro que a mesma comunidade que se queixa da falta de celeridade de Justiça quando a Justiça lhe interessa é uma das grandes responsáveis pela sua lentidão quando a Justiça não lhe convém.

O autor escreve segundo a antiga ortografia.

in Diário Economico

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