Os caminhos da trafulhice

Durante meses o país viveu mergulhado numa espécie de sonho orçamental: havia em Portugal um governo que se predispunha a devolver dinheiro dos impostos cobrados às famílias. Era uma questão de dias, talvez semanas, mas estava aí a emergir algo absolutamente inédito e arrojado no nosso país: a devolução de impostos. Ninguém desconfiou de nada. Até porque era uma ideia ternurenta e irresistível: na prática, aquele governo estava empenhado em dar prémios às famílias.

Mesmo com (muitos) rectificativos que desmentiam a convicção das previsões, ninguém neste país ousou colocar em causa, não uma promessa, mas um presente. Uma espécie de consideração personalizada, um miminho, do governo aos portugueses que pagavam tudo o que lhes era pedido, sem dó nem piedade. Mas, convenhamos, devolver impostos era mais do que mostrar boas práticas de política orçamental. Era quase a materialização da doutrina do papa Francisco que, na altura, já agitava a alma de muitos de nós e oferecia aos responsáveis governativos uma aura de bonitos, limpinhos e bons. Mas antes de selar a canonização deste episódio, que prometia lançar girândolas pelo país inteiro, surge o inesperado. Começaram a aparecer, aqui e ali, timidamente, rumores de que as receitas angariadas não chegavam para o presente prometido. Talvez tenha de ser menor a devolução, diziam. Mas menor quanto, perguntava o povo, alimentando a esperança, mas já agarrado ao bolso? Devolver um bocadinho já não era mau, pensavam os portugueses em uníssono. No fim, nem uma parte, muito menos um bocadinho. Ninguém recebeu nada de volta.

Um ano antes desta novela, o mesmo governo, de gente séria e prestável, falava aos portugueses das suas boas acções. Assim, explicaram, bem explicadinho, que os cortes nos salários não eram definitivos e que logo que possível a rapaziada recuperava o que tinha sido cortado. Sorrimos todos, a fazer contas à vida, mas nenhum de nós imaginava que o Sr. Jeroen Dijsselbloem, Presidente do Ecofin, fazia contas muito diferentes: para ter consequência nos objectivos do défice estrutural, oferecido a Bruxelas, os cortes tinham de ser definitivos. Pronto, que seja, disseram eles, “esquecendo-se” de avisar o país desse pormenor. Assim foi. Estavam apalavrados cortes definitivos e, no ano seguinte, além desses, ainda arrancariam mais 600 milhões às pensões, não fosse uma geringonça meter-se à frente violentamente.

Como isto andava animado entre final de 2014 e 2015, não era preciso adicionar mais entretenimento. E como o povo queria era a saída limpa, ouvia-se isso em todo o lado(?), preferiram, então, caridosamente, esconder uma coisinha sem importância: um banco prestes a explodir em cima dos contribuintes. Meteram no fundo da gaveta o Banif e foram-se entretendo com o falhanço da venda do Novo Banco e a sub-capitalização da Caixa Geral de Depósitos. Como meter lixo debaixo do tapete é pouco prudente, o Banif espalhou estilhaços até à execução orçamental, impedindo a saída do procedimento de défices excessivos e ameaçando, até hoje, o país de sanções; já a CGD teve de ser reestruturada e o Novo Banco está como estava, por resolver.

Nisto tudo, juro que não encontro nenhuma trafulhice. Tudo bons rapazes (e rapariga, já agora!).

O autor escreve segundo a antiga ortografia.

 

in Diário Economico

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