Regresso à alegoria da caverna

Na República, Platão reflete sobre o conhecimento humano, que se resumiria a sombras projetadas no fundo de uma caverna, na qual o homem permanecia de costas voltadas para a entrada e, consequentemente, para o verdadeiro mundo.

Nunca como hoje tal alegoria foi tão real. Nesta época em que o tempo e o espaço parecem ter-se fundido no aqui e agora, em que o acontecimento que ocorre no Japão é seguido em tempo real na África Austral e toda a informação transborda dos dedos à distância de um clique, partilhamos de uma ilusão do saber que nos transforma em protagonistas passivos num jogo de sombras que outros projetam.

Sem falar sequer na pseudo-informação não controlada que corre nas redes sociais, mas cingindo-nos à informação dita séria veiculada pelos media, facilmente somos levados a concluir que as nossas agendas de pensamento resultam de uma hierarquização de notícias cada vez mais impactantes mas efémeras, criando em nós um turbilhão de emoções e reações.

Durante semanas, o tema de abertura de todos os blocos noticiosos, de todas as primeiras páginas dos jornais, foi a tragédia do Mediterrâneo, com imagens de embarcações precárias a transbordar de homens, mulheres e crianças em fuga, de relatos contados na primeira pessoa, outros documentados com imagens de horror, desumanas. Levantaram-se vozes, fizeram-se debates, reuniram-se personalidades ao mais alto nível, traçaram-se programas? A vaga de indignação varreu tudo e todos. O mundo chorou o menino vestido de vermelho cujo corpo, qual boneco abandonado, jazia na orla de uma praia que deveria ter-lhe servido de lugar de brincadeira e não de morte.

Hoje, já ninguém lembra o seu nome e poucos são os que ainda se indignam. A situação perdeu o seu valor de notícia e, como tal, passou para segundo plano nas nossas agendas mediáticas, políticas e pessoais. Desapareceram as sombras projetadas, mas a realidade mantém-se.

Isabel Santos é, talvez, a deputada portuguesa que mais tem lutado para que se resolva esta crise humanitária, para que se encontre uma solução, para que se salvem vidas enquanto é tempo. São poucos os que a conhecem porque a sua luta, embora vigorosa, tem-se pautado por uma discrição que só a honra. Nem mesmo o facto de ter sido, durante mais de um ano, Presidente da Comissão dos Direitos Humanos da Organização para a Segurança e Cooperação Europeia (OSCE) lhe deu destaque de paragonas nos media.

Esta semana, publicou na sua página de Facebook: “Há dias de raiva e desespero… Já não tenho cabeça para mais nada”, depois de mais um grito de alerta que lhe chegava de Lampedusa pela voz de um médico, e que dava conta da morte de 250 pessoas em novo naufrágio. Acabava com este desabafo e pergunta: "Bem sei que as carpetes e o ar condicionado dos salões da política internacional continuarão a abafar os gritos de desespero desta gente… Até quando?".

Talvez até que cada um de nós saia da caverna para agir no mundo.

in Diário Economico

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