Perdemos

No pontão de Santa Bárbara, um casal nos seus sessentas e muitos pediu uma foto e contou parte da sua história de vida. E como costumam descer de Seattle, onde vivem, para Palm Springs, para descansar numa pequena casa de férias que compraram quando trabalhavam. Falaram dos netos e do quanto faziam questão de lhes ensinar a honradez do trabalho. Falaram da economia e da política. Não eram racistas, não eram defensores das armas, não queriam muros com o México, nem expulsar os refugiados. Mas iam votar Trump. "Não gosto dele e, se os meus amigos me perguntarem, se calhar nem lhes admito isto que te contei a ti. Mas qual é a alternativa? Votar no Sanders, que me quer tirar a reforma toda com impostos? Ou na outra, na Hillary, que fez a vida toda apoiada nas elites podres e nos lobbies que temos e agora vem que nem uma hipócrita?". Disse-lhes que sim, que eram as alternativas e que a mim me pareciam bem melhores. Encolheram os ombros e ele disse "ainda bem que não votas cá". Riram-se, recomendaram um bom sítio para comer hambúrgueres em Seattle e despediram-se.

Foi esta a América que votou em Trump. Não foi só esta, foi também a dos ?rednecks', das bandeiras da confederação e da defesa do porte de arma. Mas foi esta América, a dos mais velhos e conservadores, mas sem fanatismos, que lhe deu a vitória. As sondagens não o previram porque muitos não foram capazes de admitir que, do alto da sua racionalidade, iam votar no candidato mais irracional da história. Até Bush, o presidente menos iluminado da história, disse ter tido a inteligencia de votar em branco (não sabemos se a teve, mas teve pelo menos para se distanciar de Trump).

O primeiro  erro dos media foi o não acreditar que era possível. Os jornalistas norte-americanos, pessoas com um mínimo de cultura, com  noção de história, cosmopolitas, que se revêem numa sociedade mais evoluída, não acreditaram. Acharam até piada ao que viram como um golpe de ?marketing' de um tresloucado que há muito perdera qualquer tipo de credibilidade.

E nós, o resto do mundo civilizado, que fazemos a ligação com o imaginário americano de Obama, das séries de televisão, dos filmes e dos livros, também não acreditámos. Já era suficientemente mau termos de nos despedir a contragosto do presidente mais ?cool' de sempre (desculpe, professor Marcelo) e, para o substituir, estarmos limitados à pior versão dos Clinton. Termos de nos preocupar com Trump era um castigo demasiado pesado para ser sequer próximo da realidade.

Esquecemo-nos que a verdadeira América não é essa, não é a dos jornalistas cosmopolitas que vivem em Nova Iorque, nem dos ícones da pop que vivem em Los Angeles. A verdadeira América é a América rural, onde dizer "that nigger" ainda é normal e rotineiro. É a América do "rust belt", que odeia a podridão do sistema em que Hillary se apoiou. Mas é também a América dos mais velhos, reformados e conservadores, que amealharam algum dinheiro ao longo da vida e, por alguma razão, vêem Trump como o menos perigoso para as suas poupanças.

Por nos termos esquecido disso, perdemos. Num ano louco que nos trouxe atentados terroristas, aumento da  popularidade da extrema-direita na Europa e a saída do Reino Unido da União Europeia, acreditámos que era nos americanos (que tantas vezes apelidamos de loucos) que a normalidade e senso comum iam prevalecer. Quando percebemos que Trump tinha hipóteses, foi tarde e reagimos mal. A imprensa americana e mundial carregou em peso sobre Trump ? esquecendo que o homem tende a contrariar os avisos moralistas ? e descansou. O resto das pessoas colocou avisos e lembretes no mural do Facebook ? como se isso alcançasse a mente dos americanos ? e descansou.

Esquecemo-nos todos da profunda divisão das bases na América, que agora continuará mais profunda do que nunca. Uma divisão visível nos velhos e novos que saltaram de felicidade com o resultado das eleições e nos velhos e novos que choraram por ver a sua sociedade ligar novamente a marcha-atrás. Uma divisão que levará o presidente Trump (ainda  custa escrevê-lo) arrepender-se do que disse enquanto candidato Trump – quando uma franja da população lhe cobrar algumas das medidas extremistas que prometeu e que, em consciência, não poderá pensar em cumprir.

Acordámos todos tarde. E foi por isso que hoje acordámos todos cedo e horrorizados, com receio do que aí vem. E será por isso que, no próximo ano, arriscamos acordar todos cedo  e horrorizados outra vez, primeiro com a vitória de Le Pen em França, depois com a vitória de Petry na Alemanha,  e depois com a entrada das tropas russas na Letónia (um risco que Tobias Stone descreve de forma elucidativa aqui).

Não há  certezas sobre o futuro, ele continuará a ser sempre incerto. Mas, a partir de hoje, também mais sombrio. O caos está à distância de um "momento Franciso Fernando". E se não fomos capazes de prever a força do ?Brexit'  e de Donald Trump, dificilmente seremos capazes de antecipar e momento desses.

in Diário Economico

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