Mérito precisa-se

O debate público do Orçamento foi intercalado pela clássica polémica em torno da nomeação do pessoal político que assessora o Governo. A informalidade do processo de selecção, que permitiu a falsificação de dados curriculares, foi o motivo da controvérsia, mas a substância do problema, em que esta informalidade, deliberada, tem carácter meramente instrumental, é a partidarização do Estado.

Embora todos proclamem o rigor nos procedimentos e a necessidade de melhoria da qualificação dos servidores públicos, os sucessivos governos têm estabelecido como critério de escolha a filiação partidária, recorrendo sobretudo às respectivas organizações de juventude ? vulgo "jotas" ?, sem atenderem a critérios de mérito, encarando o Estado como couto privado, cujos proventos são distribuídos como recompensa pela fidelidade. E embora todos critiquem o sistema quando na oposição, todos o praticam quando instalados no poder. Até o Bloco e o PCP, autoproclamados consciências morais da nação, mantiveram o silêncio, só quebrado com os casos recentemente conhecidos.

Com efeito, a nomeação de um exército de apoiantes políticos para funções no Estado é uma sólida e duradoura instituição nacional. Sólida porque, apesar das críticas e denúncias de que é alvo, e da indignação geral que causa, se mantém inalterada. Duradoura, porque tem raízes profundas na história pátria. Se actualmente permite fidelizar os futuros influentes dos partidos, na monarquia constitucional servia para garantir o voto.

O acesso e a permanência no poder dependia, em grande medida, das "doces cantigas de empregos" e das "pingues sinecuras", como dizia Eça de Queiroz, que o Estado distribuía liberalmente pelos apoiantes, garantindo-lhes proventos generosos e colocações prestigiadas. De tal forma que o próprio Eça, defensor da "revolução preparada na região das ideias" quando jovem, se deixou vergar pelo peso do sistema que criticara, acabando por ceder à tentação, numa fase em que se considerava já "vencido da vida", de pedir um governo civil ao seu amigo Oliveira Martins, que entretanto envergara a "púrpura de ministro", para o seu cunhado Manuel.

Hoje, tal como nos idos de oitocentos, o exercício do poder assenta numa rede de relações pessoais e partidárias, sistema que sendo, até certo ponto, compreensível num país saído do Antigo Regime, não é tolerável numa democracia moderna que conta já com mais de quatro décadas de vida.

A tão proclamada reforma do Estado bem podia começar por aqui. Uma cultura de rigor no recrutamento não apenas garantiria uma escolha de pessoal adequadamente qualificado, que melhor servisse a res publica, como transmitiria maior confiança aos cidadãos, justificadamente descrentes das suas elites.

in Diário Economico

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