Um acordo vergonhoso

Durante os pretéritos cinco anos, dois jornalistas franceses ? Gérard Davet e Fabrice Lhomme ? acompanharam quase diariamente a atividade do Presidente francês, François Hollande, e foram recolhendo as mais diversas opiniões, análises, desabafos e confissões que Hollande com eles ia partilhando sobre o exercício da sua função presidencial, com vista a, futuramente, virem a publicar um livro que ilustrasse, fundamentalmente, os bastidores e o lado menos conhecido do Palácio do Eliseu e do pensamento do seu pequeno ocupante.

Com o aproximar do fim do mandato presidencial em Abril do próximo ano, o livro foi dado à estampa e saiu agora ao público com o sugestivo título "Um Presidente não deveria dizer isto…" ("Un Président ne devrait pas dire ça…"). É pacífico, entre os observadores atentos à realidade política francesa, que a publicação do livro neste momento preciso ? em que as sondagens dão uma taxa de aprovação de François Hollande a rondar os 4% e em que há a firme convicção de que as próximas eleições presidenciais se disputarão "à direita", entre Marine Le Pen, que parece ter um lugar garantido, e outro candidato gaullista que tanto poderá ser Alain Juppé como Nicolas Sarcozy, une fois de plus ? terá significado a machadada final e fatal em qualquer hipótese de Hollande renovar a sua suprema magistratura por mais um quinquénio, tal é o conteúdo comprometedor da obra publicada.

Não nos interessa, neste momento, tecer um comentário geral sobre o livro que acaba de sair a público nem, tão-pouco, sobre as suas eventuais consequências no panorama político francês. É matéria que ficará para momento mais oportuno e espaço mais adequado. Há, todavia, um aspeto que merece a nossa atenção e obriga a que nos detenhamos numa reflexão mais aprofundada.

Uma das revelações que o livro citado se encarregou de trazer a público consistiu no anúncio de que François Hollande fez um "acordo secreto" com a União Europeia para não cumprir as metas do défice, apresentando sempre previsões orçamentais falsas. O acordo acontece desde que Hollande foi eleito, em 2012, e segundo os autores vigora até 2017. Terá sido assim que a França escapou a qualquer processo de sanções por incumprimento do défice e aos consequentes procedimentos por défices excessivos.

A divulgação deste entendimento não foi, até agora, negada por nenhum dos seus intervenientes: François Hollande não reagiu (nem a esta nem a outras revelações feitas pelo livro); os Presidentes da Comissão Europeia ? tanto o anterior, Durão Barroso, como o atual, Jean-Claude Juncker ? têm-se remetido a um silêncio ensurdecedor sobre a matéria. Na prática, pela falta de reações ocorridas, ninguém hoje põe em causa a existência, efetiva, de um tal convénio entre a Comissão Europeia e a França.

Que dizer sobre este entendimento? Deste logo que ele roça o que de mais indigno e ultrajante pode existir no quadro da vivência comunitária europeia. Estamos, inquestionavelmente, perante mais uma prova provada da velha máxima orwelliana de que todos os Estados são iguais, mas uns são mais iguais do que outros. Percebe-se, agora, de forma bem mais eloquente, o que pretendia dizer há meses o Presidente da Comissão Europeia quando se permitia afirmar que a França era… a França. Claro que este entendimento não teria sido possível, na atual Comissão Europeia, se o Comissário Europeu responsável pelo orçamento não fosse um… socialista e francês: Pierre Moscovici, o tal senhor que se tem caracterizado por um rigor formal e intransigência relativamente a Portugal, quando se trata de avaliar o cumprimento dos limites do défice por parte de Lisboa.

Mas o acordo em causa é tão mais ignominioso quanto sabemos (e temos sentido bem na pele) o quanto a mesma Comissão Europeia que transige e tergiversa ante Paris, se tem mostrado tão inflexível e rigorosa face a outros Estados, sobretudo da zona euro, que arriscam a violação dos critérios de convergência. A política dos diferentes pesos e diferentes medidas consoante a dimensão do Estado que se tem pela frente. Para uma instituição que, à luz dos Tratados da UE, tem a missão de ser a guardiã dos tratados, não estamos mal servidos.

Duas notas finais não podem deixar de ficar registadas.

Em primeiro lugar, a tristeza de vermos, a posteriori, a "Comissão Barroso" envolvida nesta barganha inqualificável com o Governo francês. Se alguém tinha a mais estrita obrigação de se colocar à margem deste tipo de entendimentos era José Manuel Durão Barroso. Hipotecou a gestão do seu mandato a benefício de uma intrujice perpetrada por François Hollande. Sai manchado naquilo que, até ao momento e independentemente das opções políticas subjacentes ao seu mandato, nunca ninguém havia contestado: o rigor dos seus dois mandatos.

Em segundo lugar, a constatação óbvia de que a atual "Comissão Juncker" se encontra em claro processo de degenerescência. Não só por ter dado sequência e seguimento ao acordo que vinha de trás e que, dessa maneira, herdou do colégio de comissários que a antecedeu, como por haver renovado esse mesmo pacto no quadro de uma nova legislatura acabada de iniciar. E, para cúmulo da incongruência e do disparate, é uma Comissão Europeia cujo Presidente vem, publicamente, defender que os procedimentos éticos contidos no seu Código de Conduta deverão ser reforçados e aperfeiçoados ? nomeadamente para aumentar o "período de nojo" de 18 meses para três anos, exigindo que quem tiver tido responsabilidades como presidente ou comissário tenha de esperar três anos até poder aceitar empregos no setor privado ?, que prescinde de todas as regras e valores éticos negociando este acordo vergonhoso com o Governo de Paris.

Definitivamente, os tempos de Juncker parecem pertencer, cada vez mais, aos tempos do passado, aos tempos da ética de geometria variável.

in Diário Economico

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