Perdemos Diogo Seixas Lopes
DiogoSeixasLopes,Toronto,2011,FacingMiesvanderRohe©André Tavares

Diogo Seixas Lopes, Toronto, 2011, Facing Mies van der Rohe © André Tavares

Perdemos o Diogo Seixas Lopes. Diogo era um Lisboeta, nascido em 1972, que cresceu a amar a sua cidade, a experimentar a intensidade de uma cidade que crescia, a descobrir as riquezas do mundo e das pessoas que o habitam. Era filho de duas personalidades que muito contribuíram para a cultura portuguesa: a jornalista Maria João Seixas e o realizador Fernando Lopes. Algumas vezes contou-me as suas memórias de infância de produções cinematográficas nos mais remotos lugares de Portugal, memórias intensas de um país que, nos anos 80, acelerava o seu processo de transformação. Ainda adolescente, Diogo embarcou nessa mudança, imerso na vibração da vida noturna lisboeta, a apreciar a música mais sofisticada e a vanguarda da arte mais radical. Imagino que o seu círculo de amigos era grande o suficiente para articular a cultura refinada da geração dos seus pais ? uma mistura única de Nouvelle Vague com Pina Bausch e Jim Jarmusch ? e a irreverência da juventude, esperando o melhor da vida.

Fez-se arquitecto, um arquitecto culto, que não hesitava em passar o verão em Nova Iorque a aprender com os arquitectos que estavam na vanguarda. Mas que também não hesitava em juntar-se aos amigos para apanhar o velho comboio da Caparica, mergulhar nas ondas e sentir a água fria do Oceano, comer peixe grelhado e discutir a tática do seu amado Benfica.
Diogo começou a sua vida profissional a escrever. Na viragem do século trabalhou como jornalista num jornal já desaparecido ? o ? e rapidamente mobilizou o seu saber para a mais significativa revista de arquitectura portuguesa desse momento, a Prototypo. Para ele, a Prototypo era uma maneira de aprender, e de ficar a conhecer. Como leitor, assim eu e muitos outros fizemos, expandimos as nossas ideias através das suas páginas, nas quais era apresentada uma grande diversidade de modos de fazer, que eram também analisados e criticados sem restrições: aprender através da acção. Foi uma contribuição singular para a sempre ensimesmada cena portuguesa, que se consolidou como uma aventura colectiva, como o Diogo gostava que fosse. Esta aventura cruzou-se comigo num momento vivaz e inesquecível na conferência Prototypo na Alfândega do Porto. Era um verão quente, arquitectos de todo o mundo aterraram na cidade e, estou certo, que quem esteve presente não esquecerá que a arquitectura pode ser um assunto sério, e que é concebida por pessoas com ideias, capazes de transformações poderosas. O Diogo gostava de ver as pessoas juntas, juntas a conversar.
Só conheci o Diogo mais tarde, depois do seu compromisso para a vida e para a arquitectura com Patrícia Barbas. Juntos, Barbas Lopes desenhavam projectos refinados, enquanto o teatro Thalia renascia das cinzas, depois de mais de 100 anos de esquecimento. Foram os anos duros da crise, e construir uma estrutura assim era, efectivamente, um desafio, mesmo contando com a cumplicidade de Gonçalo Byrne. A estrutura crescia de dia para dia, conquistando aos poucos todo a potência que fazia o Diogo sorrir, e que nós podemos sentir incorporada no betão. Um certo dia, a inscrição no frontão foi recolocada: Hic Mores Hominum Castigantur (aqui se castigam os costumes dos homens). Havia uma ligação evidente entre a ironia da inscrição e o teatro da crise social e política portuguesa. Este sentir político e poético estava presente em todos os gestos do Diogo, cada pensamento ou reflexão carregava um carácter político que se expressava através de uma gravidade poética.
O Diogo gostava de falar, de comunicar. É por isso que temos uma Trienal para construir juntos este Outono, e escrevemos e fizemos tantas coisas juntos. Conheci-o melhor durante as nossas longas conversas. Portugal e a Arquitectura eram o ponto de partida para excursões por todo o mundo. Era um Lisboeta, e em qualquer canto era possível partilhar este sentido de pertença que abria caminho às mais belas e inacreditáveis viagens com o pensamento. E convertia cada pensamento em acção. E cada pensamento, e cada acção, tinham um sentido colectivo e uma vontade generosa de partilhar e aprender com os outros. Por isso é que calcorreámos o país com tantos amigos e tantos arquitectos. Foi nessas correrias que me contou das suas memórias de infância em Trás-os-Montes, que eu depois recuperei nas minhas próprias memórias e nas memórias do cinema. O Diogo tinha uma forma cinematográfica de pensamento, imaginava enquadramentos e montagens, recorrendo sempre a este media poderoso, trazendo o cinema para cada forma e cada acção. As suas memórias cinematográficas de um país atávico eram também as promessas que, na nossa infância, tínhamos para um país diferente. E estávamos sempre dispostos a construir essas promessas. Quem vir As Mil e Uma Noites, o filme do seu grande amigo Miguel Gomes, compreenderá o que não sou capaz de escrever. O mundo é cruel e parece impossível construir essa transformação, é impossível, mas ninguém pode baixar os braços, e não podemos deixar ninguém baixar os braços. Sem concessões. Imagino que fosse essa a pulsão que o levava a comunicar tão bem.
O seu trabalho está a ganhar repercussão internacional, tal como as fundações da sua próxima obra estão a ser cravadas nas avenidas de Lisboa. O puzzle parecia estar a encaixar. De repente, o encanto soturno da metrópole lisboeta que revelou em Cimêncio, em conjunto com Nuno Cera, reverbera com mais força.
O renascer do Thalia, a sua opera prima, foi simultâneo à sua tese sobre a Melancolia. Como escrever um livro sobre o sentido de perda? E como escrever hoje sobre a morte trágica de Aldo Rossi, no próprio dia em que o Diogo morreu? O livro do Diogo sobre a Melancolia, um encadeamento de ideias pungente e poderoso, foi consensualmente aclamado. É uma demonstração que podemos esquecer a arquitectura, mas que não nos podemos esquecer de nós próprios, do nosso próprio esquecimento. A realidade é demasiado cruel e aprendemos isso todos os dias. Também aprendi com o Diogo que temos os nossos amigos para partilhar as agruras da vida, para lutar pelas belas ondas do Atlântico e pelas alegrias da existência, sem nunca perdermos de vista quem somos, de onde vimos e para onde queremos ir. Sempre.
André Tavares
18 de Fevereiro de 2016
Curador geral, com Diogo Seixas Lopes, da 4ª edição da Trienal de Arquitectura de Lisboa (6 Out ?11 Dez 2016)

in Construir

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