Ordem dos Arquitectos celebra 80 anos de Siza com cinco olhares

altNo dia em que o arquitecto Álvaro Siza Vieira celebra 80 anos de idade, a Ordem dos Arquitectos publica na sua página um conjunto de cinco olhares sob a forma de textos da autoria de arquitectos próximos do autor portuense.

Até ao próximo sábado, Carlos Castanheira, Roberto Cremascoli (dia 26), Adalberto Dias (dia 27), António Madureira (dia 28) e Nuno Higino (dia 29), cliente e responsável pela construção da Igreja de Stª Maria no Marco de Canaveses, darão o seu contributo com textos onde reflectem sobre a obra de Siza Vieira, que celebra também 60 anos de profissão.

“É uma efeméride a que a Ordem dos Arquitectos se quis associar, tentando compor um olhar mais fino sobre o que significa trabalhar com Siza, como se fosse possível inventar uma teleobjectiva sobre o grande mistério da prática da arquitectura”, pode ler-se na página da Ordem na Internet.

O primeiro texto é da autoria de Carlos Castanheira:

COMEÇAR COM AS BRANCAS*

Começamos sempre com as brancas. Ele, o Siza, o Álvaro Siza começa com as brancas.

Nós podemos arrumar o tabuleiro, preparar os espaços e materiais. Até podemos organizar as regras, o calendário, o ritmo, mas as brancas começam primeiro.

Não é regra ou lei. É natural e naturalmente óbvio.

O primeiro passo, quase sempre, é apresentado em forma de esquisso.

Às vezes este esquisso é já, quase, o final, o xeque-mate, a obra. Está tudo ali. Só falta trabalhar, jogar.

Outras vezes mostra as marcas da indecisão e da procura, alguma timidez. Gesto de distração ou tentativa de apropriação do espaço, para, na jogada seguinte, abandonar e tentar outras estratégias, outras jogadas.

Com frequência, este gesto volta ao processo e, apesar de não estar na linha de jogo, volta como método de verificação e de algum controlo ou contenção.

É necessário verificar jogadas para reforçar estratégias.

As pretas, nós, jogamos. Avançamos com as nossas peças, de acordo com as regras e outras estratégias que conseguimos fazer valer.

Esforçamo-nos para acompanhar o pensar, dando luta para que o jogo tenha interesse e resultados elevados. O jogador à nossa frente é experiente e joga vários jogos em simultâneo.

Introduzimos jogadas e informação para que o jogo se mantenha e a reação seja imediata, e quase sempre assim é.

Há jogadas que nos parecem claras, lógicas, e nos dão a ilusão de que o jogo está sob controlo. Parece.

Outras são desconcertantes, nada racionais, mas onde se percebe que o jogador gosta do que fez mas não sabe bem porque o fez. Procura. Experimenta. Acredita no que faz, pois tem curriculum, mas é desconfiado e gosta de arriscar para depois verificar.

Não sabe porque joga assim mas, quase sempre, são jogadas que desconcertam pela elegância.

Não é necessário explicar tudo.

Nós acompanhamos e garantimos que o jogo se mantem vivo, dentro do tempo que o relógio marca, de acordo com as regras.

O jogo, o projeto, é jogado no nosso campo onde temos as condições e os utensílios necessários a uma rápida compreensão.

Quase sempre há vários tabuleiros disponíveis, projetos e jogos em fases ou jogadas mais ou menos avançadas.

Marco o ritmo de acordo com as necessidades e com o avanço do jogo, diga-se do projeto.

As respostas umas vezes são rápidas, outras ficam adiadas para outra sessão.

 

Há dias em que o jogo se concentra num só tabuleiro, noutras os jogos mais parecem uma jornada simultânea.

Outros há em que o material fica em cima da mesa para ser retomado na próxima vez. Para estudar em casa, num café ou num lugar improvável.

Mas vai sempre a jogo. Reinventa o tabuleiro, as peças. Às vezes até tenta inventar as regras. É persistente. É persistente na persistência.

Teimoso, muito, e quase sempre. Mas tem razões para o ser. É necessário acreditar. A teimosia também é método.

Por vezes vem com uma jogada desconcertante que obriga a recomeçar tudo de novo. Desconcertados, tentamos acertar o jogo. Esforçamo-nos. Não. Afinal é só uma jogada de distração. Temos que nos concentrar no tabuleiro e no jogo desenvolvido.

É imprevisível. Não. É mesmo uma jogada a que temos de prestar toda a atenção para saber como responder.

No xadrez é regra não se falar, no nosso jogo a discussão é constante e o ambiente descontraído.

É normal o acompanhamento vocal: com uma melodia mais ou menos conhecida, muitas vezes velhas glórias, mas sempre divertidas.

Às vezes a cantiga cai na repetição e o tema torna-se aborrecido. Temos que introduzir outra melodia. Os dotes vocais, discutíveis, são muitos pois vão do pop, ao jazz e ao lírico.

A poesia é presença necessária.

Algumas anedotas e outras histórias que, para quem está de fora, poderiam parecer desajustadas também fazem parte do jogo e até lhe introduzem alguma riqueza.

Desconcertados por uma jogada que parece menos ajustada perguntamos: porquê este esquisso, esta proposta, esta jogada?

Desconcertado por ter sido apanhado ?em falso' responde: porque eu gosto!

Parece suficiente e é.

Fica claro que o jogo, o xadrez, não é só racional. Há sempre um pouco, por vezes muita, irracionalidade, talvez genialidade, diriam alguns.

A resposta basta, não foi a primeira vez, mas é desconcertante e obriga-nos a rever estratégias e materiais. Mais uma vez. É jogo.

Como sempre, a nova proposta, a desconcertante, é a mais interessante. Jogada ganhadora.

O jogo prossegue com jogadas ritmadas, marcadas pelo relógio e pelo calendário.

Apetece esticar o jogo mantendo-o infinito, pelo prazer do jogo, da diversão que obriga a muita transpiração e, como se diz, a alguma imaginação.

Não se descansa enquanto o jogo não augura um final com qualidade.

 

Na verdade, este jogo, ou projeto, passará para outros tabuleiros: nós já jogamos com as brancas; outros intervenientes no processo de obra, jogarão com as pretas.

O xadrez exige as brancas e as pretas. E implica regras que devem ser cumpridas. Com criatividade. Não se pode avançar primeiro com as pretas.

O jogador das brancas é sempre campeão. Mas, mais do que isso, é parceiro e amigo. É Mestre.

Mestre na arte do jogo de projetar a Arquitetura. Já não se joga assim neste acelerado e globalizado planeta. Terá passado de moda?

 

Joga-se um jogo de cada vez mas como se fosse o único. Talvez o último.

Neste campeonato todos os projetos são iguais mas cada um é decisivo para o título.

Jogar, mesmo sabendo que nunca vamos jogar com as brancas, é um prazer, uma formação contínua.

Muitos jogos se seguirão. Outros tabuleiros nos esperaram.

Não sabemos jogar outro jogo.

 

 

Carlos Castanheira

New York, 19.06.2013

in Construir

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